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O tradutor, crítico literário e professor Paulo Bezerra, que traduziu mais de 50 livros do russo (Foto: Marcio Nunes/Gazeta Russa)

Tradutor Russo Lavradense: “Não há guerra só contra militares”

O tradutor, crítico literário e professor Paulo Bezerra, que traduziu mais de 50 livros do russo (Foto: Marcio Nunes/Gazeta Russa)

Por André Resende

Poucos paraibanos são sumidade para falar da história política e social da Rússia. Paulo Bezerra, 82 anos, natural de Pedra Lavrada, Seridó paraibano, maior tradutor brasileiro das obras clássicas dos escritores russos Fyodor Dostoiévski de Mikhail Bakhtin, certamente é um dos conterrâneos mais indicados para contextualizar a invasão das tropas russas em solo ucraniano, conflito armado iniciado no último dia 24 de fevereiro.

Com a experiência de quem viveu na União Soviética por muitos anos e de quem carrega consigo parte da cultura russa, Paulo Bezerra é enfático. Para ele, a ofensiva russa é algo abominável, uma insanidade e uma desumanidade características de Vladimir Putin, presidente russo.

“O Putin, na guerra da Chechênia, destruiu a cidade de Grozny, matou dezenas de milhares de pessoas com o maior sangue frio. É o tipo oriundo do maldito KGB. Essa guerra contra a Ucrânia, todos os argumentos, de que a Otan só cresceu, nesse ponto ele tem razão, mas isso tem que ser discutido em um fórum Internacional e não agredir o país matando gente como tem feito na Ucrânia. Não há guerra só contra militares. Guerra é guerra. Quando ela começa, é uma desgraça geral”, comentou Paulo.

Mesmo com a última visita à Rússia tendo sido feita em 2013, do Rio de Janeiro, onde mora, Paulo Bezerra consome diariamente o noticiário russo. Sobretudo nos últimos dias, tem lido a imprensa da Rússia para acompanhar a narrativa que está sendo construída no país que decidiu cruzar a linha da discussão diplomática e iniciar os ataques militares. O tradutor e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro aposentado alerta que todas as guerras se iniciam com mentiras.

O trato da imprensa russa, conta Paulo Bezerra, é tratar o conflito armado como operação especial. Ele reforça que a imprensa russa vive sob uma censura irrestrita por parte do governo de Pu-tin, uma herança cultural iniciada no pós-revolução, em 1917, quando a imprensa russa passou muitos anos se portando como um panfleto do partido comunista.

“Eles não chamam de guerra, está proibido usar apalavra guerra, chamam de operação especial. Que operação especial é essa? Para ajudar Donbass e Lugansk, que se declararam república popular? Só o termo república popular me dá calafrios, porque eu sei o que é isso. Toda ditadura comunista também se chama república popular”, destacou o tradutor.

Rússia e Ucrânia possuem muitas semelhanças no aspecto cultural e, para adentrar numa seara que Paulo Bezerra domina, linguístico. O tradutor e professor lavradense lamenta que dois povos irmãos, nascidos no mesmo espaço, com uma pequena distância entre suas capitais, com línguas tão próximas, estarem se matando esse momento. Paulo Bezerra acredita que, não obstante o êxito militar do conflito por parte da Rússia, Vladimir Putin já perdeu a guerra.

“A investida de Putin sobre a Ucrânia saiu pela culatra. Moralmente, politicamente, ele virou um pária internacional. Ele conseguiu uma coisa, que ninguém havia conseguido até hoje, que é a união absoluta dos países que compõem a União Europeia. Esse conflito é uma democracia ruída contra um ditador. Putin é um ditador. Não existe liberdade de expressão na Rússia. É uma coisa simplesmente abominável em todos os sentidos”, lamentou Bezerra.

Muito embora seja visto no Brasil e em outras partes do mundo com bons olhos, Paulo Bezerra considera Putin um político de centro-direita, reacionário. “Ele é criado KGB, foi criado nessa escola. Ele representa o pior que o KGB sempre teve, que é uma postura extremamente autoritária e de uso de técnicas terroristas”, explicou. Em um paralelo com os tempos da União Soviética, Bezerra percebe Putin como Stalin, a quem considera um monstro por ter matado 40 milhões de soviéticos entre 1928 e 1941.

“A Rússia atual não chega a ser um regime totalitário, porque tem algumas aparências de liberdade, mas é, sim, um regime muito fechado, reacionário e de direita. O Putin não tem nem identificação com a revolução, nada de socialista. Achar que o Putin tem alguma coisa de socialista somente quem for muito cego, principalmente para não perceber que é um governante de direita”, definiu Bezerra.

Ao contrário do que se pode pensar, para Paulo Bezerra, a Rússia não reserva nada da política econômica dos tempos do socialismo. Na leitura do tradutor, a política econômica russa é calcada num capitalismo feroz, pior até do que é visto em outras partes do mundo, como no Brasil. No nosso país, aliás, Paulo percebe que, mesmo com as investidas contra a Constituição de 1988, a Carta Magna ainda é a grande responsável por manter a democracia de pé no Brasil.

Entretanto, do pouco que permaneceu dos tempos da União Soviética, dissolvida em 1991, um aspecto histórico, o tensionamento, a polarização com os Estados Unidos, permaneceu como uma herança dos tempos de influência soviética no mundo. O conflito armado na Ucrânia é visto por muitos especialistas como um agravamento da política internacional conduzida pelos EUA de polarização em relação ao Oriente. Paulo Bezerra analisa que a Guerra Fria nunca acabou de verdade.

“O que foi a Rússia depois da União Soviética? Com o Yeltsin sempre bêbado… Porque na privataria do Yeltsin, ele distribuiu a bel prazer as grandes empresas estatais e criou oligarquias, os bilionários russos da noite para o dia. Esses bilionários são amigos do Putin, estão no entorno dele. Inclusive, eles já estão querendo o fim da guerra porque o dinheiro deles está bloqueado na Europa”, acrescentou.

Aliás, o tradutor e professor explica que na própria Rússia está havendo uma oposição geral à guerra. O país está dividido entre uma parte que apoia Putin e uma grande parte que não pode se manifestar nas ruas, porque é reprimida, mas se manifesta nas redes sociais. “É uma situação difícil de analisar à distância, mas é fato que Putin está longe de uma unanimidade na Rússia, até porque fora dela, ele se tornou um pária”, explicou.

Sobre a visita recente do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, ao mandatário russo, dias antes do início do conflito com a Ucrânia, Paulo Bezerra não vê profundidade na relação dos dois chefes de Estado. Porém, a influência brasileira no contexto internacional, atualmente, é praticamente nula na visão do tradutor. “Eu não vejo profundidade na relação entre Bolsonaro e Putin. Com a derrota de Trump nos Estados Unidos, Bolsonaro ficou sem pai. Do ponto de vista da diplomacia internacional, o Brasil é um zero à esquerda”, acrescentou.

Mesmo crítico a Putin e tudo que ele representa, Paulo Bezerra reforça que o conflito na Ucrânia atende aos interesses econômicos norte-americano, sobretudo ao complexo industrial militar, que está abastecendo a Ucrânia com armas, vendendo material bélico. Para Bezerra, esse setor da economia norte-americana nunca perde. “Eu lembro que na guerra do Afeganistão e do Iraque, porque eles precisam de um foco de guerra em algum lugar, porque alguém tem que comprar armas”, avaliou.

Aposentado de seus trabalhos como tradutor, Paulo Bezerra conta que tem aproveitado os tempos pandêmicos para ler muito. No cardápio, muitos clássicos em grego e latim, assim como romances do escritor e jornalista cubano Leonardo Padura. O tradutor elogiou a escrita do cubano, a quem tem reservado uma parte dos seus dias para ler uma das obras mais recentes, “Como poeira ao vento”.

“É um retrato de Cuba, um país sem presente, nem futuro. Muito triste, mas é a verdade. Trata-se de um grande romance. O Padura é muito bom escritor, desde o primeiro livro, “O homem que amava os cachorros”, que é um romance muito bem escrito. É praticamente uma biografia do Trotsky escrita por um estrangeiro, um romance muito rico. Ele é um grande romancista”, elogiou, avisando que os próximos dois anos de vida vão ser dedicados à leitura, seja da imprensa russa, seja da literatura clássica.

Jornal A União 

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